Com direção de Diogo Liberano e texto de Rafael Primot, espetáculo conta a trágica história de B, que nasceu mulher, mas assumiu uma identidade masculina, em busca de se reconhecer e ser reconhecida
“Eu não sou eu, nem o outro. Sou qualquer coisa de intermédio”. Os versos do poeta Mário de Sá-Carneiro poderiam descrever a trajetória de B, que, fisiologicamente, nasceu mulher, mas se reconhece como sendo do sexo masculino. Esta situação traz concretude para uma questão fundamental: quem somos? Somos o que parecemos ser? Baseado em uma história real, o espetáculo ‘Uma Vida Boa’ leva para o palco a vida de B e sua busca por ser quem de fato é, com os desdobramentos provocados quando resolve se assumir publicamente como ele, despertando outra característica histórica da humanidade: a incapacidade de compreender, respeitar, ou mesmo aceitar, o que lhe parece diferente, desconhecido.
A história que deu origem a ‘Uma Vida Boa’ aconteceu nos Estados Unidos em 1993 e gerou um documentário e o filme ‘Meninos não choram’. B(Amanda Vides Veras) foi criada como menina pela família, mas resolveu assumir sua identidade masculina, mudar de cidade e acaba se apaixonando porL (Julianne Trevisol), além de fazer amizade com vários moradores da nova cidade, incluindo J (Daniel Chagas), que viria a ser seu assassino, juntamente com um amigo, condenado à prisão perpétua e que segue cumprindo pena. Já J foi condenado à pena de morte, mas a sentença ainda não foi executada e o caso aguarda revisão. Rafael Primot usou como base para a criação do texto apenas os acontecimentos históricos, através do que foi publicado sobre a tragédia. “Não sou um adaptador, preciso de liberdade para a criação. Eu aproveitei situações reais, mas absolutamente todas as linhas do texto são da minha imaginação, busquei criar uma nova história a partir do real”, enfatiza o autor.
‘Uma Vida Boa’ põe em cena a história de um indivíduo buscando se entender e se reposicionar, ao mesmo tempo em que almeja uma aprovação social. “Essa peça apresenta a história de uma pessoa em busca de ser o que ela é, mas que talvez só ela saiba (ainda)”, pondera Diogo. Nessa jornada, B entra em conflito com sua identidade/existência. “O próprio personagem tem preconceito sobre si mesmo. Na tentativa de lidar com aquilo que desconhece, ele busca se encaixar em um padrão socialmente aceito, por uma questão de sobrevivência”, explica Rafael Primot.
Amanda Vides Veras é não apenas a protagonista, mas também a idealizadora do projeto, ao lado de Pablo Sanábio. A atriz buscava um trabalho que pudesse ter um forte impacto sobre o público e chegou a essa história real, encantada também pelo personagem, que considera um grande desafio profissional. “Interpretar um transexual exige uma composição muito delicada e um estudo aprofundado, li muito sobre o tema, mas o essencial foi conhecer pessoas e me aprofundar em um mundo que talvez jamais conheceria se não fosse essa peça, que já fez de mim um ser humano melhor”, celebra.
Para compor o personagem, Amanda parou de fazer as sobrancelhas, as unhas e cortou o cabelo bem curto e faz, desde o início do ano, um trabalho corporal para ganhar massa muscular, especialmente nos braços, além de usar uma atadura elástica pra prender os seios. A atriz assistiu ainda a uma série de documentários sobre o tema, viu filmes como ‘Tomboy’ e mergulhou em livros como ‘Viagem Solitária’, de João Nery, que julga imprescindível para o seu processo de criação. “A partir dele, pude perceber como este ainda é um assunto desconhecido. Escutamos muito as pessoas se referirem a um trans como ‘aquela menina que se veste de menino’ ou ‘aquele menino que finge que é menina’ e NÃO é isso. É uma pessoa aprisionada no corpo errado”.
A montagem propõe uma discussão mais ampla, muito além da questão da sexualidade. “Essa peça não é sobre gênero. Ela precisa ser sobre o humano frente ao que desconhece, sobre o humano espantado e, mesmo assim, disposto a dialogar com aquilo tudo que o assusta, apenas por ser diferente. Precisamos, enquanto seres em sociedade, ultrapassar os nomes das diferenças e trabalhar nossa capacidade não de aceitá-las, mas de saber que elas existem e continuarão existindo”, explica Diogo Liberano. “Quando a gente não sabe lidar com o desconhecido, a primeira reação é de aversão, de ter uma reação violenta a isso. Até na ficção é assim. Quando o extraterrestre aparece, a primeira ideia é bombardeá-lo, não tentar ouvi-lo, conhecê-lo. É fundamental aprendermos a conviver e respeitar o desconhecido, lidar com o que não nos pertence”, complementa Rafael Primot.
O autor não construiu uma história cronológica, propondo idas e vindas que constituem um mosaico que articula memória e atualidade. E o jogo cênico criado por Diogo Liberano nasce diretamente dessa dramaturgia. “Na memória, a história acontece como se estivesse em looping. O que ocorreu já teve fim, já foi, se completou, então quando estão dentro da memória, os personagens seguem vivendo aquela história tal como ela foi. No espaço da atualidade, flagramos estes personagens no hoje, no agora, tendo consciência de que a sua história já aconteceu e que hoje eles podem apenas lembrar dela, tê-la viva em suas memórias. O espaço da memória só está vivo porque os personagens lembram essa história na atualidade. É um jogo que nos possibilita dinâmicas tempo-espaciais que nos aguçam a transitar pela complexidade dos afetos em curso e, mais que isso, é um jogo que pretende chamar a atenção do espectador não para a história de um crime, mas sim, para uma situação onde vemos o caminho, o percurso pelo qual o ser humano se faz e refaz, um caminho pelo qual capturamos a humanidade sendo trabalhada na nossa frente”, explica Diogo.
A cenografia de Brunella Provvidente é composta por estruturas finas de aço que remetem a portas, janelas e enquadramentos vazados, sugerindo um espaço frágil, tal qual é o espaço tanto da memória, quanto da atualidade. A proposição estética do espetáculo se inspira nas obras de Francis Bacon, por conta de seus corpos estranhos, como também se inspira no jogo de revelar e ocultar (que é o jogo vivido pelo personagem B, que precisa de esconderijo para bancar aquilo que ele realmente é).
Os figurinos de Bruno Perlatto procuram dimensionar quem são esses personagens. “Pedi que se investigasse a possibilidade de criação de um figurino em camadas. E eis que, por conta disso, acabamos descobrindo que a principal ação física do espetáculo é destruir segredos, para que se tente – a todo e qualquer custo – ser aquilo que se é, sem esconderijos. Assim, a nudez que o espetáculo apresenta vem como interpretação nossa da violência que a história real nos oferece. É violência de todos os tipos: psicológica, física, social... Com uma carga tão grande de violência, ousamos traduzir no tirar das roupas (ou no ter as roupas tiradas) tal violência. Um ato de desnudar significa, para nós, ser violentado”, enfatiza Diogo. A ficha técnica traz aindaDaniela Sanchez (iluminação), Diogo Ahmed Pereira (trilha sonora original), Márcia Rubin (direção de movimento) e Ana Lelis (direção de produção).
O texto de Rafael Primot abre uma janela onírica, em um momento crucial do espetáculo, trazendo para a cena um sonho de B, onde ele finalmente realiza um desejo de que a própria vida o privou. O que poderia ser uma mera licença poética aproxima ainda mais o público da tragédia real que aconteceu com aquele personagem. “O sonho não surge apenas como uma ilusão, mas sobre o que ele gostaria de ser, uma tentativa de se transformar em outra coisa, ainda que idealizada”, justifica Rafael. “O sonho neste espetáculo é o que temos de mais concreto. É o nosso desejo tornado possível”, exalta Diogo.
UMA VIDA BOA
Estreia – 16 de julho (quarta)
Temporada até 21 de agosto
Horários: quartas e quintas, às 19h
Centro Cultural da Justiça Federal
Preços
R$ 30,00 (inteira) / R$ 15,00 (meia-entrada para idosos acima de 65 anos, estudantes, professores da rede pública e portadores de deficiências)
Classificação indicativa: 16 anos
Duração: 60 minutos
Por Alessandro Moura