Hamlet ou Morte é uma inteligente montagem de duas peças totalmente independentes que se unem por um elo inteligentemente criado em meio a circunstâncias cômicas e fatais, nas quais as vidas de simpáticos trapaceiros e vigaristas dependem de um bom desempenho da arte e do perdão da grande Rainha da Inglaterra.
O Grupo teatral OS TRÁGICOS tem uma excelente configuração de bons atores, muito bem preparados corporalmente, facialmente e com impostações de vozes sensacionais, assim como uma qualidade cênica inquestionável, são cinco jovens rapazes dotados de uma competência teatral dificilmente vista em companhias semelhantes.
A comédia para eles é visivelmente uma coisa fácil e os atores já acumulam uma longa experiência, até mesmo porque o laboratório deles se deu em lugares públicos como Largo da Carioca, Largo do Machado e outros locais urbanos de grande fluxo de passagem, mas que fizeram com que muitos parassem para acompanhar esse maravilhoso trabalho.
O texto é muito bom, divertido e inteligente, porém precisa de alguns ajustes para dar um pouco mais de ritmo e leveza, já que em alguns momentos parecia soar arrastado e até mesmo cansativo, sensação talvez provocada pelo famoso nervosismo da estreia e a expectativa por estar na frente de grandes amigos do grupo, mas a verdade é que a peça é contagiante e a todo momento novas risadas saem facilmente de todos aqueles que ali estão para apreciar essa gostosa comédia.
O cenário é somente um andaime com uma placa de madeira na parte superior, que eles adaptam cada hora de uma forma diferente, servindo de prisão, varal, coxia e residência, o que é bem simples mas se adequa totalmente ao conteúdo apresentado por eles e confere um gostoso aspecto de teatro de carroça mambembe e itinerante. Houve momentos em que o cenário quase atrapalhou o andamento da montagem, mas foi divertidamente inserido ao contexto de maneira improvisada e eficaz.
A iluminação da peça, talvez pelo espaço onde seja apresentada, sofreu com alguns problemas de aproveitamento. Pude observar que a luz rosa ou lilás estava constantemente acesa, mas ela nunca se fez presente, talvez pelo fato da luz amarela genérica estar sempre ligada e ofuscar os efeitos desejados. A luz azul também permaneceu acesa por todo o espetáculo e somente cumpriu sua função no momento em que um ator pediu uma iluminação de mar. Em alguns momentos na parte superior do andaime os personagens quase não puderam ser vistos pela plateia por falta de uma iluminação mais móvel e presente em tal local ou ainda por uma falha de direcionamento do canhão de luz.
A sonoplastia da peça é fantástica, muitas vezes feita pelos próprios atores fora de cena por meio de instrumentos, de um teclado existente na parte externa próxima à coxia ou até mesmo com o uso de suas bocas.
Embora a sinopse a descreva como uma peça de Shakespeare roubada e apresentada como último ato de esperança para um bando de vagabundos e aproveitadores querendo escapar da morte, a participação de Shakespeare e Hamlet na trama demora muito a acontecer e com isso quem acha que vai assistir a uma paródia de Hamlet talvez se decepcione um pouco, pois somente depois de uns 40 minutos de peça é que tal trama começa a ser apresentada em seu segundo ato. Porém quando enfim começa o segundo ato é fantástico, realmente o grupo mostra a que veio e faz cada nova fala e cena se tornarem únicas e inesquecíveis.
O figurino ressalta as características de cada personagem, sendo muito leve, solto, esfarrapado, dando um aspecto andrajo e possibilitando assim inúmeras acrobacias e movimentos dessa intrépida trupe que com profissionalismo encena brigas, correrias, tropeços e coreografias bem ensaiadas.
Yuri Ribeiro é um talentoso ator que nessa peça pôde mostrar o melhor de si em uma performance muito engraçada e bem construída. Ele se utiliza de um humor maduro e sofisticado mas ao mesmo tempo em alguns momentos ingenuamente infantil e doce, trazendo à tona uma espécie de graça pueril. Em algumas tiradas seus cacos se revelaram de grande proveito e habilmente bem inseridos.
Mathias Wunder, ator fantástico e incrivelmente talentoso, o mais performático e caricato da peça, é o responsável pelas maiores cenas cômicas da trama, explorando sua facilidade para fazer caretas e expressões idiotas e maliciosas que já são alvos de grandes aplausos e elogios. Pude perceber pelos comentários no dia que todos ficaram impressionados com a inteligência desse ator, capaz de se mostrar engraçado fazendo uso dos recursos mais primordiais, como seu próprio corpo e sua face. Pelo que pude notar, sua semelhança com o ator e cantor Roger Daltrey não se dá apenas pela aparência e sim também pelo talento e pelo conhecimento do seu tempo de comédia.
Pedro Sarmento se desconstrói totalmente de sua aparência tranquila e bela para dar espaço a um exímio picareta, golpista, ladrão e mulherengo. Com uma sensualidade cafajeste bem pobre e igualmente maliciosa, ele agrada e se faz engraçado a cada novo trejeito, olhar e fala, jogados voluptuosamente para seus companheiros de grupo e cena. É o mais maduro, firme e completo ator em cena, que mesmo de fora da ação central consegue captar e roubar os olhares da plateia que o ama e o recebe de forma calorosa. Isso sem falar na fantástica imitação dele de um Rei com voz de Lula que leva todo o público a uma gostosa gargalhada.
Diogo Fujimura é um intérprete com tendências mais tradicionais e sua capacidade de se apresentar como ator é uma habilidade muito importante, pois é quem mais se transmuta em cena dentro do quinteto. Do pastor ao carrasco, passando por outras personalidades, se revela um verdadeiro coringa, utilizando-se de sua voz, sua habilidade corporal e física e acima de tudo de seu enorme e profundo carisma. Em suma, estive diante um ator educado e delicado que se porta de maneira semelhante aos mais importantes exemplos de ícones do teatro.
Já com Gabriel Canela aprendi nessa peça uma lição muito importante e muito vital para todo e qualquer ator, sobre o quanto é valioso ser um grande ator coadjuvante, ter a percepção de que é possível atuar em um papel de pequeno porte e mesmo assim se fazer brilhar e ser importante em uma trama sem a necessidade de tentar roubar cenas. Ciente da famosa frase de que menos é mais, Gabriel é extremamente importante e necessário na peça em todos os momentos em que serve de escada ou atua em papéis de menor porte. Em ocasiões de solos feitos por ele, conseguiu mostrar todo o seu grandioso talento com pequenos arroubos intempestivos e de suma capacidade teatral. As cenas em que ele estava em off eram aquelas em que ele mais chamava a atenção e suas reações com as deixas que ele oferecia aos outros para brilharem revelavam que ele sabia remeter com maestria e total benevolência, sendo de uma graciosidade e generosidade ímpar com os parceiros de palco e também como pessoa na hora dos cumprimentos, fotos e agradecimentos.
Assistir Hamlet ou Morte significou mais do que assistir a uma simples peça, servindo de constatação de que para se fazer um excelente espetáculo não se precisa de nomes renomados e uma grande infraestrutura, e sim de garra, foco, talento e perseverança. Com jovens atores ainda em início de carreira, mas de grande relevância e competência, a supremacia de suas interpretações se faz valorizada com muito estudo, persistência e logicamente entrega total de corpo e alma.
Foi o primeiro trabalho que vi de OS TRÁGICOS e já me tornei um grande admirador. O grupo nos apresenta esse espetáculo em um momento onde muitos estão sendo encorajados a fazer “Pockets Theaters”. Eles ousam e abusam de vários recursos cômicos homenageando grandes vertentes da comédia de muitas gerações. Utilizam-se de recursos circenses, homenageiam palhaços, mímicos e artistas de rua, e quem mais lucra com isso é a plateia que se depara uma abundante diversidade de esquetes para rir.
Contando ainda com paródias de músicas como Morango do Nordeste e Atoladinha, imitação de cinema mudo (minha cena predileta no espetáculo) e com grande excesso de caretas, trejeitos e pausas, acabaram arrancando fortes e calorosos aplausos da plateia em cena aberta. Por tudo isso que já foi dito, essa peça se revela um grande misto de ousadia e sabedoria provando que é possível unir de maneira inteligente e funcional as novas tendências aos recursos clássicos, resultando em uma grande produção.
Hamlet ou Morte - Uma Trágica Comédia é a mesclagem perfeita de varias técnicas de humor compartilhadas e dosadas de forma coerente, precisa e com discernimento de quanto tempo elas devem ser empregadas e suas devidas ordens, dispondo assim de uma grande riqueza teatral e cômica. Um humor de fácil percepção com elementos atemporais e recursos dos mais sofisticados e elitistas até o besteirol mais popular.
Texto: João Loureiro Filho | Equipe Rio no Teatro
Supervisão de Texto: Marcelo T C Thomasi
Peça: Hamlet ou Morte!
Temporada: Até 24/04/2015 na Sede das Cias