Não se pode começar uma crítica sobre uma peça com o texto de Nelson Rodrigues sem falar do ícone da dramaturgia que ele é. Nascido em Recife, mudou-se muito jovem para o Rio de Janeiro, onde se tornou carioca e fluminense de coração. Seus textos são reproduzidos nos palcos e nas telas da tv e do cinema há anos e assim permanece até hoje.
Apesar de ter escrito suas obras durante o ápice do Modernismo no Brasil, Nelson é responsável por criar em seus textos naturalidade e transpor a tragédia grega de forma contemporânea. Foi o responsável por criar o gênero da Tragédia Carioca, e ‘A Falecida’ foi a primeira de muitas.
A peça conta a estória de Zulmira, uma mulher do subúrbio carioca, infeliz com o casamento, que tem tuberculose e a sua única pretensão na vida é ter um enterro luxuoso, para causar inveja na sua prima Glorinha que não a cumprimenta mais. A personagem divide a vida com Tuninho, um homem desempregado que passa seu tempo jogando sinuca com amigos e gastando o pouco de dinheiro que tem em apostas nos jogos do Vasco.
Eis que a obra de Nelson ganha vida, nos palcos do Maison de France. A primeira Tragédia Carioca passada no subúrbio do Rio de Janeiro transfigura-se no cenário incrivelmente detalhado que Teca Fichinski criou. Quando vemos pela primeira vez esse cenário, nos deparamos com uma beleza singela e grotesca que se transfigura na imagem do subúrbio. Os objetos de cena usados na montagem interagem com os atores e se movimentam pelo palco. Os atores, por vezes, se transformam em outros objetos e, juntos com o cenário, se movimentam com tanta graciosidade que, por momentos, ignoramos a tragédia que se passa ali.
Mas no meio dessa bela arte, é quase uma obrigação aplaudir calorosamente Ary Sperling pela trilha original e por renovar de forma estonteante marchinhas de carnaval conhecidas por todos nós.
O desenho de luz de Paulo Cesar Medeiros merece o nosso respeito, assim como o operador de luz Rodrigo Bezerra de Melo. Um espetáculo de iluminação simples e limpa. Medeiros cria um jogo de luzes que interage até com o próprio texto, enriquecendo e construindo reflexões sobre os personagens da trama. Pode-se, inclusive, ressaltar a cena final, quando a sombra da falecida fixa-se nas portas do subúrbio, nos fazendo refletir que atrás de cada porta tem uma falecida, uma mulher que morre um pouco por dia no anseio de conseguir fazer algo que quer, de ser amada, desejada, ou, até mesmo, de morrer de forma luxuosa como Zulmira queria.
Por falar em Zulmira, Bianca Rinaldi nos apresenta o inesperado: uma personagem engraçada no tom certo, fria no tom certo, sexy e bonita no tom perfeito. Talvez se ela fizesse o clichê esperado por muitos, cheia de marcações e trejeitos teatrais, sua interpretação seria como um carro alegórico: passaria, todos falariam, mas jamais seria lembrado. Bianca deu o seu toque à personagem e está radiante com a sua atuação única e precisa.
No palco, todos os atores estão bem, a direção precisa de Moacyr Góes caiu como uma luva no elenco. São sete atores em cena, brigando entre si e respeitando o espaço de cada um. É como se Moacyr nos preparasse para um banquete de Nelson, em que a poesia naturalista, simplória e, até mesmo, erótica fosse o prato principal e os atores nos servissem isso. Torna-se complicado criticar a poética de Nelson nessa versão, já que Moacyr a passa para o palco com tanta cautela e nos a entrega numa bandeja de prata para apreciá-la.
Leon Góes é o perfeito marido festeiro, torcedor fanático, que diverte o público com a simplicidade e a falta de atitude que um homem da época deveria ter. O ator Augusto Garcia surpreende fazendo o impagável galanteador Timbira, com um charme e uma dicção afinada. Outra grande surpresa foi a atriz Simone Centurione, que interpreta três personagens diferentes e nos agracia com sua voz em momentos inesperados, transformando a cena numa belíssima pintura.
‘A Falecida’ nos surpreende de uma forma gostosa, divertida, emocionante e nos faz enxergar além. Todos nós somos um pouco mortos, deixamos nos levar no decorrer da vida e esperamos que no final tudo dê certo. O espetáculo tem sua própria luz, e pela primeira vez vi realmente Nelson no palco, sem exageros, sem clichês, sem teatralidade. Nelson era natural, exposto e cru e é isso que é visto na peça. Aplausos.