Modéstia é um exercício primoroso da arte dramática ou, para quem preferir, pós-dramática. O texto apresenta duas tramas paralelas, e o público realmente acompanha duas histórias distintas, sendo que uma delas se passa na Buenos Aires contemporânea e a outra nalguma vila russa do século XIX. Os quatro atores têm, então, de dar conta de dois personagens distintos cada um.
Conforme vai acontecendo a trama em Buenos Aires, é inevitável você não pensar que já tenha visto “aquele filme” se você já tiver assistido “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, do Almodóvar. A maneira como se dá o encontro das personagens naquele apartamento e o ápice do histrionismo de cada uma delas é característica marcante do cineasta espanhol. Por outro lado, a trama que se passa na Rússia do século XIX é aquela encontrada nos romances do Dostoievski e do Tolstoi. Em razão disso é que se infere a engenhosidade do argentino Rafael Spregelburd, pois através dos recortes traçados, ele dialoga esses ambientes distintos e dá suporte a um prazeroso espetáculo.
Na interpretação, o grande destaque é Isabel Cavalcanti, que deixa o público embasbacado a cada fala de sua tresloucada personagem argentina e comovido com a dor da personagem russa. São dois lados completamente distintos, mas muito bem elaborados e levados a cabo pela atriz, de modo que, mesmo não sendo protagonista, todos os demais atores, em muitos momentos da peça, acabam ficando à sua mercê. É o que ocorre com Bel Garcia que, apesar da interpretação firme e rebuscada, não está à altura da dimensão cênica alcançada pela companheira.
No elenco masculino, Fernando Alves Pinto, que, em princípio, tem seus personagens como fio condutor de ambas as tramas, veste bem os papéis. No entanto, malgrado realize um excelente trabalho de voz – uma vez que faz dois registros de voz completamente diferentes – soa um tanto desproporcional, parecendo que a voz não cabe dentro de seu corpo, e lá pelas tantas você passa a confundir imagem e voz. Em muitas cenas, nada mais nele consegue falar além da própria boca, o que é lastimável, pois é a coisa mais linda do mundo (guardando-se as devidas proporções, é claro) quando um ator consegue falar por todos os poros e até mesmo no silêncio.
Gilberto Gawronski, mesmo tendo realizado bons trabalhos no teatro ao longo de sua carreira, desta vez não vai com afinco na proposta e, conseqüentemente, não convence a natureza dos personagens interpretados, especialmente o argentino.
Pedro Brício concilia inteligentemente sua direção à dramaturgia e traz uma fluência agradável à cena, ainda que algumas saídas dos personagens fiquem mais no faz-de-conta.
A cenografia e a iluminação são bem exercitadas ao reconstituírem o apartamento de Buenos Aires e, ao mesmo tempo, darem a impressão de que se está num casebre eslavo. Por outro lado, a estrutura do palco do Centro Cultural dos Correios desvaloriza a disposição das cenas.
Com as ressalvas já adiantadas, é um exercício teatral que vale a pena ser conferido e aplaudido.